Olhos azuis que não veem mais o mundo

Rua João sebastião Bunik, 255. Jardim impecável, banquinho em baixo da janela com uma simpática senhora sentada. Todos que passavam pareciam conhecê-la. Bom dia Dona Rosi, boa tarde  tia Rosi, Opa, Rosi… Não é para menos, um bairro residencial em que ela morava a mais de 50 anos. Ativa na igreja e nas novenas, vivia arrecadando doações na vizinhança e estava sempre pelo jardim.  “Venham sentar no banquinho e ver o mundo com a vó” ela dizia para seus netos.

70 anos, loira, olhos azuis e pele bem branca. Vivia de vestidos florais no verão e coletes e camisas no inverno. Acordava todas as manhãs para fazer esteira enquanto observava a rua pela janela da sacada. Fazia bolos, pães e café. Ah… e que café! Depois de tomar café ela batia a toalha no jardim para deixar as migalhas de pão junto com o alpiste para os passarinhos.

Adorava seus netos e suas flores, não tinha quem no bairro não ouvisse falar neles. Na hora do café de sábado a tarde ela jogava bola com o menino mas sempre cuidando para que o jogo não destruísse o jardim. Suas flores favoritas tinham até um toldo para não serem afetadas pelo sol forte do meio dia. Quando era dia do jardineiro o dia era dedicado só para isso, ela ficava junto com ele trabalhando com as plantas. Chapéu de palha, avental e luva de cozinha este era o look do dia do jardim.

Casa arrumada, café na mesa era hora de entrar no facebook. Em sua página compartilhava frases motivadoras, rezas e fotos em que arrasava nas curtições como ela mesma dizia. No fim de sua agenda telefônica a nova palavra do ano: Selfie! Dona Rosi era uma vovó moderna.

Viajou uma única vez. Foi para a Espanha fazer o caminho de Santiago. Amou, mas para ela não existia lugar como a sua casa. “A Espanha é linda e viajar é muito legal, mas é coisa para se fazer uma vez na vida”.  Sua casa era seu xodó, sempre limpa, organizada e com as franjas dos tapetes bem penteados. Na sala dos cristais ninguém entrava.

Domingo era dia de almoçar em Santa Felicidade, pontualmente ao meio dia. Sempre no mesmo restaurante onde ela já era querida e conhecida pelos donos, garçons e até pelo segurança do estacionamento. Passeava nas lojinhas e depois ia ao santuário, acendia uma vela, sentava no banco para apreciar a vista e juntava pinhão com os seus netos.

Dona Rosi colecionava leques e recortes de jornal. Se orgulhava em ter participado dos casamentos que apareciam na coluna social. Estava sempre convidada para as festas e eventos da cidade.

Um dia Rosi saiu para tomar café com uma amiga e na volta não passou bem. Derrubou  a chave do carro no chão e não conseguiu juntar. Chamou a vizinha que logo percebeu que algo não estava bem e gritou para uma enfermeira que morava na casa da frente. A enfermeira logo percebeu que Dona Rosi tinha tido um AVC, talvez o grande mal do momento. Os vizinhos se reuniram e a levaram para o hospital.

Na UTI uma fila de pessoas para ve-la e só elogios das enfermeiras. Dona Rosi é muito simpática, conversa com todo mundo. Aparentemente lúcida Rosi sobreviveu e voltou para casa pedindo esfirra do seu restaurante favorito.

Assim foi por quase um mês, mas ai a demência aos poucos foi se aproximando da doce senhora, que já não sabia mais o que era real e o que era alucinação. Rosi que sempre dizia que viveria para ver seus bisnetos, que não via a hora de entrar na igreja para o casamento de sua neta estava cada vez mais distante de cumprir este objetivo.

Os dias se passaram e a tristeza contagiou o Bacacheri, ninguém mais gostava de passar pela rua em que Rosi morava, ninguém pedia mais por notícias pois sabiam que não seriam boas.  O jardim não estava mais tão bem cuidado, não tinha ninguém sentada no banco perto da janela e a casa estava adaptada para a cadeira de rodas.

No dia 14 de janeiro de 2017 Rosi acordou com dor no estômago, ligou para sua filha,  conversou, disse que ela tinha dado muitas asas para a neta que estava viajando e pediu um café para a cunhada que estava cuidando dela. Quando o café ficou pronto, os médicos chegaram para ver o motivo da dor, ao chegarem na sala perceberam que Dona Rosi não tinha mais pulsação.

Foi assim que ela partiu, ver o mundo de um outro ângulo e não mais do jardim de sua casa. Deixando suas flores e passarinhos e uma saudade enorme no coração de quem teve a chance de conviver com ela.

Esta foi uma pequena homenagem a pessoa que apesar de nunca ter gostado de me ver viajando pelo mundo, tinha um orgulho enorme de mim e me apoiava em todos os meus sonhos. Tenho certeza que hoje, levo comigo um pouquinho de Dona Rosi para Qualquer Latitude.



Yasmin Graeml criou o Qualquer Latitude em 2013 durante um intercâmbio de High School na Austrália, jornalista e apaixonada por contar histórias adora dar conselhos de viagem e preparar roteiros para os leitores do blog!

3 Comentários

  • Luciana de Luca

    Que lindo! Eu conheço essa história por palavras e sentimentos da sua mãe! Ver a vó Rosi retratada aqui por você me emocionou. Avós e netas falam a língua dos anjos!
    Siga voando, menina linda. A vó Rosi certamente se orgulha!